Cinza


Adoeceu.
No final das contas, não havia sobrado quase nada de tudo que ganhou na vida.
Isso culminava na ideia de que não poderia realizar seu sonho de que, quando a morte chegasse, pudesse ser cremado e suas cinzas espalhadas pelo vasto quintal de sua casa. Um jardim de flores múltiplas.
Mas sabia que a esposa tinha lá suas economias. Numa última razão, quem sabe ela poderia fazer isso com sua carcaça esquecida pela alma.
Ela era impiedosa. De sensibilidade zero. E jamais iria investir suas economias numa coisa funesta assim. Um dia, chegaram até a discutir veemente o caso. Uma crise de tosse no sujeito encerrou aquela que foi a última discussão entre os dois.
O inevitável dia chegou. Ele que por toda vida esqueceu-se da morte, viu ela se lembrar dele. Foi numa manhã chuvosa e cinzenta, sem chance de se despedir do necessário que sempre o cercou: seus livros, seus projetos engavetados, seus discos e amigos.
A esposa continuou achando uma grande bobagem a cremação e não voltou atrás. Foi sepultado mesmo no cemitério próximo sentindo o peso da terra.
O tempo passou e a saudade invadiu a alma da viúva de forma voraz. Não se conformava com aquela ausência nem podia lembrar que fora incapaz de realizar o último pedido de marido.
Pelo tempo, tentava esquecer essa sua culpa. Por vezes, passava mesmo dias e dias sem lembrar. Mas bastava uma manhã cinzenta acontecer pra ela se lembrar de tudo.
Era como se o dia, cinza, clamasse em silêncio pela eternidade daquele jardim em frente...

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