As lágrimas de Deus.


Aquilo me tirou o sono. Literalmente.
Caindo lentamente sobre o fôrro da casa de telhados antigos, uma goteira insistente se inseria no silêncio da madrugada.
Gota por gota, num ritmo constante, era como se algo ensurdecedor tomasse conta de meus ouvidos
Levantei meio “fulo” da vida lembrando apenas do bendito pedreiro que não fez aquele serviço direito, mas que recebeu direitinho o que cobrou pela empreitada.
Arrastei o sofá, procurei por um pano de chão. Tirei um velho quadro da parede, pois a goteira, já não encontrando mais vazão, escorria pela parede caiada da sala bem atrás dele.
O quadro, todo ele molhado às costas, acabou por estragar junto da estampa emoldurada. Por alguns segundos, minha vontade era de jogá-lo com força ao chão e pisoteá-lo. Subir até o telhado e destelhar tudo. Aos berros, xingar o bendito perdreiro que naquela hora da madrugada, com certeza, dormia o sono dos justos.
Me contive a tempo para não acordar a vizinhança com aquela revolta fora de hora.
O rôdo em minhas mãos ainda pôde levar o resto de tudo ralo afora.
Desperto, liguei a tv pra ver se o sono perdido voltava...
Num canal aberto eram exibidas em reprise as imagens da tragédia que as chuvas causaram nas regiões serranas do Rio de Janeiro. Um quadro alarmante de cidades sendo devastadas pelas forças das águas. Famílias desaparecendo inteiras. Destruição. Imagens impressionantes. A parcela de culpa do Estado levanta a tese de que o "óbvio" e certos fenômenos que, por estarem bem debaixo dos nossos narizes, tornam-se invisíveis. Com uma superioridade imbecil, as partes competentes passam invictas por eles.
Atônito, lembrei de quando aqui, em 2005, a chuva forte devastou a Rua Pe. Gebardo, o final da Rua 1º de maio, Bairro do São Francisco e a Ponte Alta. Alguns conhecidos perderam tudo. Isso sem falar na cidade de São Luiz do Paraitinga, devastada no ano passado.
Certa vez, não me lembro onde, li uma frase que dizia que "as chuvas são lágrimas de Deus". Mas sinto que Ele ainda não está cansado dos homens. O heróico resgate de uma criança de 6 meses entre aqueles escombros me confirmava isso.
Olhos rasados de água, pus-me a pensar na minha intolerância diante dos dois quadros. Aquele que a televisão mostrava e o meu, destruído por uma simples goteira. Às vezes o ser humano é mesquinho demais para se caber em si.
Sentado, reavaliei os valores naquela madrugada sem sono e cheguei á nítida conclusão de que a goteira batendo sem trégua no fôrro da sala era música aos meus ouvidos. Que perder o sono era muito pouco enquanto pessoas perdiam seus filhos, seus pais, suas famílias inteiras. Pessoas que não teriam mais nem sequer uma parede para dependurar um simples quadro.
Agradeci a Deus por minha simples goteira e pedi que Ele tivesse piedade de todos os envolvidos naquele caos.
Um quadro que muitos hão de dependurar pra sempre na parede da memória estarrecida.

As lágrimas de Deus então despertavam as lágrimas dos homens...

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