Tempos de Mordaça.


1979, ano em que eu entrei para a escola e me inseri pela primeira vez no mundo mágico das palavras.
“Escola Estadual de Primeiro Grau Prefeito Solon Pereira”, era a inscrição que eu carregava cheio de orgulho no bolso do “guarda-pó” impecavelmente branco.
Tempo em que se carregava o caderno, o lápis e a borracha num daqueles saquinhos de arroz e mesmo assim se tinha certa vaidade por isso. Tempo dos ensinamentos da professora Dona Zilda flutuando entre as páginas da cartilha “caminho suave”.
Pelas ruas ainda eram ouvidas algumas palavras de ordem devido aos restos de ditadura que iam aos poucos se enfraquecendo. Os telejornais passavam a retratar com mais coragem as manifestações á favor da anistia que decretaria o fim do exílio de muitos brasileiros mesmo tendo alguns optado pelo “exílio voluntário” para se promover.
A liberdade de expressão parecia finalmente emergir de um profundo abismo repressivo depois de muito tempo. O esgotamento do regime militar já sentia o peso de manifestações que lhe bloqueavam alternativas de sobrevida. As insatisfações que despontavam no empresariado influente no país cresciam também entre professores, na intelectualidade, nos artistas e parecia aflorar mesmo entre alguns políticos que faziam parte do “sistema” que sentiam a força da revolução e tentavam então pular de lado.
Nos colégios, a formação de filas e o uso obrigatório de uniformes davam ainda aspectos ditatoriais. Tudo, inclusive pratos e canecas plásticas onde eram servidas as merendas para os alunos tinha gravado a inscrição “Governo do Estado de São Paulo” num tom de exaltação ao regime imposto.
Na televisão era exibida uma advertência dizendo “terminou o horário livre”. Era hora da censura abrir espaços dentro das casas. Eu não sabia direito o que tudo aquilo significava, mas obedecia tudo o que meu pai dizia.
Meu pai, católico fervoroso, sempre tinha um pé atrás com assuntos aparentemente subversivos e comunistas. Além do mais, ele trabalhava junto aos padres redentoristas e tinha que zelar por uma postura e preservar a família sobre qualquer propósito.
Naquela época ainda repressiva ia acontecer uma série de apresentações no antigo Cine Aparecida e nós teríamos que formar um coral para cantar a música
“Pra não dizer que não falei das flores” do Geraldo Vandré, canção considerada subversiva pelos militares e tida como um hino de resistência daquela geração.
Alguns dias antes da apresentação Dona Zilda chamou cada aluno até sua mesa e entregou um papel mimeografado que teria que ser assinado pelo responsável autorizando o aluno a ir naquela apresentação.
Cheguei em casa radiante. Seria o primeiro ato cívico da minha vida. Enquanto esperava papai chegar da labuta, ia cantarolando a melodia, num modesto ensaio. Quando ele chegou fui logo entregando o papel. Depois de tanto analisar, de ler e reler me disse que eu não iria. Não entendi direito a razão, mas como sempre, obedeci. Tempos depois é que pude valorizar aquela sua atitude em querer me preservar.
Hoje, analisando bem aquele fato, entendo que o medo foi o maior aliado da ditadura militar naquela época de repressão. Muitos se rebelaram lutando contra aquela imposição e acabaram presos. Outros tantos foram obrigados a trocarar de país e até de mundo e nunca mais foram vistos. A busca da liberdade de expressão era a grande razão de toda uma geração.
Naquele distante 1979, mesmo sem saber “por que”, pude sentir o peso daquela mordaça que às vezes bate como um verdadeiro “coice” e que foi ficando pra sempre registrado na memória. Coisas que com o passar dos anos foram reforçando ainda mais a grande vontade de lutar e de mudar alguma coisa mesmo encontrando alguma resistência contrária ao nosso modo de pensar e agir. Só sei que aquela canção hoje, nada e ninguém pode agora me proibir de cantar.

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