Sumindo na imensidão.


Ele havia passado todo o dia recolhendo latas e papéis recicláveis pelas ruas da cidade.
Não estava só. Ia sempre junto com ele aquela antiga revolta impregnada no pensamento.
A chuva daquela tarde fez do seu andar passos urgentes. E distraído com tantas luzes que já acendiam as fachadas dos imensos edifícios, quase não encontrou o depósito de ferro-velho com os portões abertos. Talvez guiado pela sorte chegou a tempo e conseguiu vender tudo o que havia recolhido durante o dia. Míseros Reais que encheram seus olhos vermelhos de brilho, mas que também atordoavam sua pequena possibilidade neste mundo capital.
De tanto pensar nisso, tudo quase o fez mudar seu rumo de casa. Pensou seriamente num momento entorpecido por alguma droga fácil. Algo que massageasse sua revolta. Ou aumentasse. Acho que talvez guiado por uma força além, desistiu daquela comum fraqueza. Pensou nas crianças e na sua companheira. Não seria justo.
Outra vez teve pressa esperando achar alguma mercearia aberta para poder comprar o que precisava. Emoldurado pelo brilho de uma lua que ás vezes sumia por entre nuvens, conseguiu encontrar um armazém aberto. Seus míseros Reais puderam comprar algumas balas e chocolates, uma lata de sardinha, um pacote de pão-de-mel, dois de ki-suco, mortadela, pilhas pro radinho e uma garrafa de aguardente.
Naquele momento o tempo já era aliado e ele pôde então tomar uma cerveja de baixa renda e fumar um cigarro picado do Paraguai.
Sentiu alívio. Parte do que pretendia naquele dia havia sido realizado. Faltava ver ainda o brilho nos olhos da criançada ao abrir os pacotes e o carinho de sua nêga acalmando-lhe a revolta.
As luzes de Natal foram iluminando a noite. Portas iam se fechando e janelas abrindo. Um cheiro diferente foi de repente impregnando-lhe as narinas e a alma.
Sua pequena compra coube numa só sacola de plástico. Foi então que ele se levantou e se dirigiu ao encontro daquela sua pequenina felicidade. Desceu os degraus da venda com ares de rei e caminhou tranqüilo pelas ruas escuras em direção ao barraco. A lua sumira entre as nuvens de um céu carrancudo. A última tragada perdeu seu teor numa bala de hortelã surrupiada da turminha.
Na entrada da favela logo percebeu um intenso tiroteio entre policias e traficantes.
“Ninguém entra e ninguém sai. Fecha tudo”, esbravejou um policial já não muito contente por estar de serviço justo naquela noite. O jeito foi arranjar abrigo atrás de um Fusca que estava estacionado por perto e esperar. Aquilo, como de costume, ia demorar.
“Mas como deixar a criançada sem os doces, a patroa sem o beijo, a revolta sem a cachaça”?
Em outras vezes ou em outras datas, até voltaria pra venda e tomava outra baixa renda esperando a poeira abaixar.
Quando percebeu certa trégua, num só salto, driblou tudo aquilo que o cercava e foi correndo em direção à entrada do morro. A revolta e a fuga da realidade foram junto.
Em meio ao barulho de sirenes, um simples estampido se ouviu. Foi um só disparo de alto calibre suficiente para fazê-lo parar.
Os segundos que se sucederam foram de embrenhar memórias rápidas: a fome de quando era menino, o primeiro roubo, as portas abertas da cadeia, o caixote de laranjas que virou berço quando o caçula nasceu, o rosto de sua mãe envolvido pela eternidade...
A semana toda havia ensaiado o “dingombel” com a criançada.
Mas tudo foi então se deslocando rumo ao nada. As luzes, piscando ao longe, foram escurecendo devagar. Bem lentamente. Foi o beijo pressentido da companheira seu último suspiro.
Inerte no chão, ele fazia agora parte de uma triste e infeliz estatística. Já havia se apartado dele a revolta febril e sua vontade de mudar de vida.
Outra chuva veio de repente...
As únicas luzes agora eram aquelas refletidas nos cacos quebrados da garrafa da aguar-dente, que junto de sua pobre alma, foi evaporando rumo à imensidão daquele céu...

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